domingo, 1 de janeiro de 2017

Sentimental q.b.

Durante anos da minha vida, o ritual de Ano Novo imediatamente pós-meia-noite era ligar para a minha mãe e, logo de seguida, para o meu pai. Breves minutos após a meia-noite, liguei para a minha mãe e, logo de seguida, durante uma breve fracção de segundo, formou-se na minha mente o pensamento automático "e agora vou ligar para o pai". E tem sido assim desde 2010, o ano em que ele morreu. Não há nenhuma destas passagens de ano em que não aconteça essa incrível fracção de segundo em que a minha mente me encaminha para uma chamada impossível de realizar.
Mas não é só nesse momento de cada Ano Novo que o meu pai ressuscita e se torna quase sobrenaturalmente presente. O outro é este: o lendário Concerto de Ano Novo, transmitido em directo de Viena pela RTP, todos os anos. Isto para mim é como o Natal ele próprio - desde miúdo, altura em que seria natural achar que uma hora de concerto de orquestra na TV era uma seca, que o Concerto de Ano Novo é um ritual incontornável, que juntava à volta da TV a família toda, algures entre o amor pela música e o amor pelas raízes austríacas. Entre a quase chamada telefónica da meia-noite e o lendário concerto das 10 e meia, 1 de Janeiro é claramente o dia em que o meu pai prova que há vida após a morte. Para mim, ele está aqui, em cada nota musical destas peças clássicas que ele amava e conhecia ao detalhe, em cada paisagem de Viena, em cada pormenor do nobre salão do Musikverein. Ele nunca esteve nesta minha casa, mas enquanto o Concerto de Ano Novo decorre, é como se ele estivesse aqui neste sofá.
Bom ano, pai!

Li este post do Nuno Markl e as lágrimas vieram-me instantaneamente aos olhos (ainda que de forma controlada). Revi-me, porque durante muito tempo tive o mesmo instinto de pegar no telefone e ser suposto ligar-lhe. Cheguei ao ridículo de estar ao telemóvel, o telefone de casa tocar à "hora habitual" e eu dizer "tenho de desligar, o meu pai está a ligar-me", para depois cair no choque.
Ontem à noite, a sair da terra do meu pai quase às 2h da manhã, pensei em tanta, mas tanta coisa... Pensei em como nunca tinha passado uma noite de passagem de ano com ele (desde que tenho idade para me lembrar), porque o ritual era passar o dia a seguir. Pensei nas noites de Natal mais felizes que tive, ao seu lado... Pensei que ele não tinha vivido o bastante para estar presente em situações extremamente banais na vida das pessoas, mas que são importantes. Não viu a festa de casamento do meu primo ontem (de quem ele tanto gostava) e tantas outras. Não me viu a tirar a carta (pensei nisto porque vinha a conduzir), não me viu a entrar na faculdade. Será que as minhas escolhas seriam iguais? Não posso deixar de me questionar sobre o meu caminho, caso ele estivesse presente... Certamente não seria igual igual, porque as minhas vivências iriam ser diferentes. Nunca irei saber, mas que diferença me faz? Tal como o pai do Markl está presente nas notas musicais do concerto de Ano Novo, o meu estava ontem à noite comigo.

4 comentários:

Anónimo disse...

Força !

м disse...

Felizmente, ainda não tenho na minha vida faltas incontornáveis de pessoas que amo. Sou uma sortuda, eu sei. Mas consigo perfeitamente empatizar com a situação de tantas e tantas pessoas que se vêem de braço dado com as saudades de alguém especial, que custa sempre mais em dias festivos. Um beijinho muito grande, querida I. O teu pai estará sempre contigo, no coração, enquanto te lembrares dele nas mais pequenas coisas.

Estudante disse...

O texto do Markl é bonito, mas o teu também é :)
Imagino que devas sentir umas saudades gigantes e não sei o que te dizer para te sentires melhor... de qualquer maneira, tu és uma forma de vida do teu pai :) ele continua a viver em ti ;)

Cat disse...

Oh querida! :( Não consigo sequer imaginar :( Um abraço apertado!